INICIAÇÃO CIENTÍFICA

Por Gilson Volpato

 

Vamos refletir um pouco sobre o que significa isso?

Que tal se significar o processo de introduzir pessoas no mundo da ciência? Não é uma interpretação descabida, certo?

E o que seria introduzir alguém na ciência? Sabemos que todos sabem que cientista faz pesquisa científica. Sabemos também que sabem que pesquisa científica é uma atividade que visa encontrar elementos materiais e lógicos que permitam respostas interpessoais de especialistas sobre questões para se entender o que é o mundo e como ele funciona.

É evidente que tal busca passará pelos procedimentos metodológicos da pesquisa científica. Esses procedimentos são usados com a função específica de produzir conhecimento com o mínimo de chance de erro. Muito dele de vem de uma simples aplicação da Lógica sobre os discursos desenvolvidos.

Há algumas formas de se definir conhecimento científico. Sugerimos partir de um processo metodológico validado pela ampla história da ciência em sua prática de publicações, ao menos do século XVII até aqui, e num cenário de competência internacional. Mais que isso, justificado pela Lógica, pela Ética e por algumas epistemologias (nem todas se aplicam à Ciência quando examinada nesse quadro mais amplo).

Ao longo desses séculos, os procedimentos metodológicos foram sendo alterados, embora algumas coisas tenham sido mantidas. Hoje, os procedimentos são muito mais fortes do que no passado, pois os cientistas estão sempre dispostos a mudarem seus procedimentos cada vez que detectarem erros. É esse caminhar corajoso e honesto que tem dado credibilidade inigualável à ciência enquanto sistema explicativo do mundo.

Um elemento crucial nessa história é que tais procedimentos em si não sustentam o conhecimento científico. É fundamentalmente necessário que haja aprovação genuína por especialistas dos respectivos temas de investigação. Não fosse isso, qualquer artigo científico publicado já poderia ser considerado conhecimento científico, mas não é1. É somente com o passar do tempo que vamos percebendo quais dos conhecimentos publicados vão sendo genuinamente absorvidos pela prática da ciência em nível internacional.

Esse caminhar depende muito das questões metodológicas, mas também dos elementos argumentativos apresentados nos trabalhos. Isso coloca a metodologia e a comunicação lado a lado na construção do conhecimento científico.

Considerando essa rápida argumentação, voltamos à questão primordial da Iniciação Científica. Iniciar pessoas na ciência implica introduzi-las no cerne desse processo. Nesse cenário, fazer pesquisas científicas não forma necessariamente cientistas. É preciso que haja reflexões a partir das pesquisas para entender a diferença entre pesquisar para encontrar resposta a uma pergunta local e construir ciência (i.e., gerar conhecimento científico).

Quais os principais elementos nesse processo? O que apaixona os cientistas? Para entender isso, considere que a produção das descobertas e sua aceitação pela comunidade científica é o ponto central. Afinal, sem esse ponto não há como prosseguir para os frutos sociais do conhecimento científico (sem isso, seria distribuição de pseudociência para a sociedade). Assim, descobre-se algo à consegue-se aprovação pela vasta maioria dos cientistas da respectiva especialidade e que estão distribuídos pelo planeta, sem entraves geopolíticos.  

Toda vez que tais iniciantes estiverem enxergando apenas as questões metodológicas, ou seus potenciais benefícios sociais, estarão desfocados na Iniciação Científica. Será necessário fazer com que percebam toda base teórica da especialidade, obviamente, mas fundamentalmente também aquela do pensamento científico. As especialidades resolvem questões ímpares, mas sem escorregarem nos procedimentos científicos gerais e necessários para qualquer área da Ciência. Afinal, formar cientistas não é o mesmo que formar especialistas.

Ensinar o procedimento científico é muito mais do que ensinar a fazer tecnicamente uma pesquisa. O indivíduo pode aprender a partir de um problema a enxergar uma pergunta. Porém, é necessário que comece a aprender como escolher problemas de relevância científica. Aqui já temos risco de um grande equívoco: o erro prático. Ele significa que o problema é escolhido em função imediata da aplicabilidade local que conseguem perceber. Será que historicamente os principais cientistas do mundo escolheram problemas dessa forma? Não que não seja uma das formas, mas a formação científica não deve introduzir os iniciantes dentro de uma camisa de força. Ela deve dar-lhes referenciais mais amplos.

Um problema cientificamente relevante é aquele que, quando resolvido, resultará na eliminação de uma trava importante para o desenvolvimento da Ciência (i.e., chance de resolver muito mais problemas relevantes a partir daí). Vejam, por exemplo, o quanto a caracterização da estrutura molecular do DNA trouxe de avanço para a área da genética e afins. Não seria por isso que esse artigo foi publicado numa famosa revista científica (Nature) em 1953 e recordado e festejado com veemência pela academia científica em 2003, quando se completaram 50 anos dessa publicação? Como foi o desenvolvimento da área Biológica após essa descoberta da década de 1950?

Do problema, temos, na maioria das vezes, que pontuar questão(ões) que queremos resolver. Não basta perguntar... é necessário saber quais as perguntas que devem ser feitas para auxiliar a solução do problema. Esse salto, como no caso anterior, exigirá de pretensos cientistas conhecerem e saberem examinar o cenário atual do conhecimento na especialidade de seus temas de interesse. Isso exige se introduzirem gradativamente na literatura da área em nível internacional (não adianta saber o que cientistas de um ou poucos países estão debatendo – busque sempre o melhor cenário). Pessoas que não gostam de ler ou que tenham problemas em ler textos mais longos, dificilmente conseguirão bom desempenho na Ciência, a menos que mudem esse perfil. Estudo profundo é uma exigência para cientistas. E por que não iniciar já na Iniciação Científica?

O salto entre a pergunta e o objetivo raramente é direto, principalmente quando a pergunta é cientificamente bem estruturada. Saber separar a diferença entre o objetivo científico, seja geral ou específico, e o fazer metodológico é crucial para se caminhar em direção à Ciência. Erro aí pode resultar em erro na elaboração de conclusões e, assim, na produção de conhecimento científico.

Saber planejar uma pesquisa a partir dos objetivos estabelecidos é também importante, porém não o torna cientista. Isso o torna pesquisador. Essa é parte fundamental na construção da pesquisa científica, mas ela tem o menor impacto na formação do cientista. Ela é mais específica para formar pesquisadores, o que é necessário para o cientista, mas não é suficiente. Muitos sabem fazer tecnicamente pesquisa científica, mas poucos desses fazem Ciência a partir da pesquisa local. Nossa pós-graduação, por exemplo, está mais estruturada para ensinar pesquisa do que Ciência. E são os coordenadores de grupos e laboratórios de pesquisa que fazem a diferença nesse quadro.

Coletar dados (qualitativos ou quantitativos) é crucial e o iniciante deve ser conduzido a refletir principalmente na importância dos resultados para o pensamento científico, bem como nas questões de boas práticas para saber lidar com os dados evitando ao máximo vieses de conduta. Afinal, nosso cérebro guia nossos olhos e nosso raciocínio para aquilo que profundamente acreditamos. A Metodologia Científica traz meios práticos para resolvermos essa questão. Porém, nenhum procedimento metodológico consegue evitar tratamentos inadequados dos dados (por ex., eliminação de um dado sem qualquer critério ou referência a ele no texto publicado). Ocorre também no caso de uso equivocado de Estatística ou mesmo falta de controle de elementos de subjetividade quando eles podem ser controlados (por ex., uso de duplos-cego). Mas o salto entre os dados aceitos e a análise pode ainda incluir vieses se não houver um alto compromisso do cientista com a honestidade intelectual (aquela que temos mesmo quando ninguém poderá saber se enviesamos ou não os dados). No caso de áreas teóricas, como Matemática e Física Teórica, olhe para o que usam para aceitarem conclusões e compare com os procedimentos da Filosofia... notará que, considerando palavras e números como linguagens do ser humano para ler, entender e explicar o mundo, essas disciplinas teóricas usam os mesmos requisitos da Filosofia (aquela racionalmente bem argumentada e não apenas pseudociências e pseudofilosofias) para sustentarem conclusões. Isso os separam da Ciência, embora no futuro as evidências científicas possam surgir e, então, esse conhecimento ser deslocado para a Ciência (Volpato, 20192; pp. 53 a 98).

Interpretar dados, sejam numéricos ou pura expressões qualitativas, é outro ponto fundamental na formação do cientista. O medo de generalizar trava a formação científica. Por outro lado, as extrapolações apressadas matam o cientista. Como escreve Lawler (1971)3: “Theory without data is fantasy, but data without theory is chaos”. Lembre-se que produzir conhecimento científico exige extrapolação além das evidências. Afinal, as conclusões nos estudos que usam amostras devem ser expressas no presente, o que indica que, como aconteceu de tal forma, então concluímos que acontece de tal forma. E é exatamente por esse tipo de pensamento que podemos usar esse conhecimento na sociedade (se acontece assim, então recomendamos tais aplicações. Mesmo sendo o conhecimento científico eternamente provisório (i.e., pode ser negado no futuro), a prática exige ação e esta é feita a partir do melhor conhecimento no momento. É aplicado quando se considera adequado e sempre com maior chance de melhora do que de prejuízo (vejam, por ex., as discussões sobre os critérios para uso das vacinas contra a COVID-19).

Após tudo isso, vem a questão da comunicação, que depende exclusivamente da qualidade do aluno nas etapas anteriores. Publicar a pesquisa realizada é uma conversa entre cientistas e, portanto, sua qualidade expressa diretamente proporcional ao nível do cientista, exceto nas questões específicas de idioma e gramática.

Além disso tudo, todas essas etapas devem ser temperadas pelas questões e soluções na área de boas práticas da pesquisa. Para isso, vale a pena seguirem as recomendações da Declaração de Singapura4. Acrescente-se a isso os aprendizados da Mentalidade Científica, que são derivações do procedimento científico, assim voltadas para a honestidade intelectual, a ausência de preconceitos5, a falta de vaidade, arrogância e autoritarismo, dentre outras.

Todos esses detalhes podem ser ainda amplificados, por meio de considerações educacionais, sociais e econômicas mais amplas, às quais a Ciência e os cientistas estão inevitavelmente imersos. Porém, a Iniciação Científica não conseguirá abordar tudo de uma vez. O que friso é que tudo acima é um processo para a formação do cientista, mas que iniciar corretamente focando mais na Ciência do que na pesquisa é fundamental. Muito possivelmente as mentes de perfil científico se empolgarão mais com os requisitos teóricos da ciência do que com o andar metodológico que exige seguir rotinas fixas dentro de um procedimento rígido de coleta de dados. Estes últimos talvez empolguem mais as mentes menos criativas e mais seguidoras de rotinas fixas que não questionam as mentes que buscam verdades absolutas. Gostar de viver na corda bamba que é o conhecimento científico é outra característica da mentalidade científica. Com diz Karl Popper, fazer ciência é construir um prédio sólido sobre o pântano.

 

OBSERVAÇÕES

 

1 Note que a publicação decorre da avaliação e aceitação por um número extremamente reduzido de especialistas na área do trabalho (geralmente de 2 a 4), considerando que normalmente exista no mundo cerca de algumas dezenas, centenas ou milhares de especialistas no tópico mais próximo do trabalho. Por isso, essa aprovação pela revista é um primeiro passo para que o estudo atinja os demais especialistas que ampliarão a análise qualitativa sobre os procedimentos no estudo. Acrescente-se a isso que algumas revistas de alto nível científico aguardam receber críticas de especialistas nos próximos 3 a 6 meses após a publicação (Technical Notes, por ex.).

2 Volpato GL. Ciência: da filosofia à publicação. 7ª ed. Best Writing, 2019.

3 Lawler EE. Pay and Organizational Effectiveness: A Psychological View. McGraw Hill, 1971.

4 A essência da Declaração de Singapura pode ser lida em https://www.wcrif.org/documents/326-singapore-statement-lettersize/file

5 Não confunda preconceito com extrapolações a partir de generalizações científicas fundamentadas. Usar o passado para inferir sobre o presente ou o futuro é um processo normal, lógico e fundamental para usarmos os benefícios da Ciência. Fazemos esse processo em nosso dia a dia. Quando embasado em análises científicas, representam o uso da melhor resposta científica no momento. Quando enviesados por nossos desejos, geralmente podem ser meros preconceitos (avaliação do presente baseado em fundamentação inconsistente ou insuficiente, mas que atende ao desejo do avaliador).

 

 

 

 

 

 

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